Já com algum tempo de leituras e pesquisas incessantes sobre o assunto, a Umbanda me aparece com o curioso aspecto de religião em formação. Muitas são suas faces. Teses são apresentadas sobre seus múltiplos aspectos, almejando sempre a expressão completa, a totalidade das Leis que a regem, ou seja, sua Codificação.
Do muito e do pouco já dito, aparecem alguns pontos comuns, a presença das manifestações espirituais de antepassados culturais brasileiros como o preto-velho, o caboclo, o boiadeiro e tantos outros que se “manifestam” nos inumeráveis terreiros espalhados por este Brasil afora. Do uso da magia para fins diversos e cânticos sagrados (as curimbas), não há terreiro ou tenda que não possua.
Estamos então diante de um caldeirão fervendo chamado Umbanda. Seus mistérios vão desde o seu nome correto – uns dizem possuir origem sânscrita! – passando por sua origem, histórica ou mítica, e pelos Orixás – quais seus nomes corretos, quais deles devem ser cultuados e de que forma. Uma dentre as várias correntes existentes no movimento umbandista, vem crescendo em aceitação, seja em sua prática ritualística, seja em sua parte teórica e mesmo no esboço para uma filosofia na ou da Umbanda. Digo pois da Umbanda Esotérica, cujo divulgador mais conhecido foi W.W. da Matta e Silva (1917 -1988) escritor de nove livros sendo que, o primeiro é também o mais importante deles, “Umbanda de Todos Nós”, primeira edição em 1956.
As dificuldades de entendimento desta raiz estão – assim como toda a Umbanda – imersos ainda em alguns véus, principalmente aos novos umbandistas, ou melhor, aos umbandistas que não tiveram a oportunidade de conviver com os primeiros praticantes desta religião. Infelizmente eu também não tive esta oportunidade, não obstante meu espírito intrigado e sedento por conhecimento das coisas às quais me interesso não me deixam desistir da pesquisa, da investigação, da procura pelos primórdios desta religião bem como suas diversas correntes que quem sabe num futuro próximo ou distante venham a se unir em nome de um conhecimento único ou constituir escolas de entendimento que apesar de distintas em suas práticas apenas fazem engrandecer a Umbanda.
Dois problemas lançarei à discussão neste texto. O primeiro deles é sobre a origem histórica desta Umbanda Esotérica e o segundo, sobre a mudança paradigmática operada por esta corrente no entendimento do Orixá, influenciando drasticamente em suas formas de culto, bem como o ponto arquimediano que vem permitindo esta operação.
Dois motivos principais me impulsionam a publicar este texto em caminhos virtuais: a busca por novas informações que possam engrandecer meus conhecimentos e a discussão por parte de todo o meio umbandista, principalmente os seguidores desta corrente, sobre as trilhas abertas nas Matas da Jurema por este diferente pensamento instaurado e nem sempre, creio eu, tão bem analisado ou discutido em seus alicerces. A sua adoção depende de modificações profundas no consciencial umbandista e que dificilmente estão sendo percebidas. E se o canto da Sabiá dentro das Matas da Jurema é sedutor, a picada da Coral é certeira, venenosa e quase sempre mortal.
Deixo claro que nenhuma das palavras que direi neste momento em nada afetam a importância dos personagens envolvidos, seja pelas idéias, seja pela influência que vem exercendo no espírito de tantos. Meu objetivo único é conhecimento, conhecimento, conhecimento. Respeitados aqueles que possuem conhecimento. Respeitada é a religião cujos integrantes tem conhecimento de suas origens e de sua doutrina.
No início deste texto disse que o maior divulgador da Umbanda Esotérica, teria sido Mestre Yapacani. Ao que nos consta, realmente o foi. Mas alguns fatos me levam a crer que apesar de reconhecida importância, não fora este insigne mestre o iniciador de tal doutrina dentre o meio umbandista. No ano de 1941 fora realizado, dos dias 19 a 26 de outubro, na cidade do Rio de Janeiro, até então capital brasileira, o Primeiro Congresso Brasileiro do Espiritismo de Umbanda, com a participação de médiuns pertencentes a diversas Tendas, almejando por objetivo a apresentação de teses relacionadas à Umbanda em suas diversas matizes e interesses (estas teses estão registradas em um livro editado em 1942 pela Federação Espírita de Umbanda na época sito à rua São Bento n. 28 – RJ) Dentre elas estava a Tenda Espírita Mirim cujo delegado representante fora o sr. Diamantino Coelho Fernandes.
No dia 19 de outubro do transcorrido ano a Tenda Espírita Mirim apresentava a seguinte tese:
“O Espiritismo de Umbanda na Evolução dos Povos – Fundamentos históricos e filosóficos”. Eis pequena parte da tese (transcrição literal) : “O vocábulo UMBANDA é oriundo do sanskrito, a mais antiga e polida de todas as línguas da terra, a raiz mestra, por assim dizer, das demais línguas existentes no mundo. Sua etimologia provém de AUM-BANDHÃ (om-bandá) em sanskrito, ou seja, o limite no ilimitado… A significação de UMBANDA (o correto seria Ombanda) em nosso idioma, pode ser traduzida por qualquer das seguintes fórmulas: Princípio Divino; Luz Irradiante; Fonte Permanente de Vida; Evolução Constante.”
Bem, nos encontramos diante do primeiro problema. Tais afirmações seriam editadas no ano de 1956 por Pai Matta o qual requer autoridade intelectual sobre tal tese, não por ter ele mesmo formulado tais explicações mas, como por ele mesmo escrito, em Umbanda do Brasil pag.74 em sua 2ª edição “…essa Revelação que originalmente nos foi feita pelo Astral Superior da Lei de Umbanda.” Lembremo-nos que a primeira publicação de seu primeiro livro ” Umbanda de Todos Nós” seria em 1956 ou seja, aproximadamente 15 anos após o Primeiro Congresso do Espiritismo de Umbanda. Estamos portanto diante de duas informações, de dois fatos que não se coadjuvam.
Segundo pesquisas feitas pela Internet existe uma Federação no Rio de Janeiro tendo por nome Primado de Umbanda que professa os mesmos conceitos expostos por Mestre Yapacani, quanto à designação de 7 Orixás (Orixalá, Ogum, Oxossi, Xangô, Yemanjá, Yori, Yorimá) bem como a concordância com a origem sanscrita da palavra Umbanda e o Nheenghatu (língua indígena derivada do Abanheegá, também indígena) usada com diversas finalidades dentro deste movimento, por exemplo, quanto à formação de nomes iniciáticos e mântras sagrados. Ao consultar a bibliografia usada por tal Federação bem como por todos os terreiros a ela filiados, constatei a não utilização dos livros de W.W. da Matta e Silva não obstante, dois livros formam citados como fonte e ambos anteriores a 1956 ou seja, anteriores à publicação de Umbanda de Todos Nós. Portanto, ou esqueceram de citar o uso de tal bibliografia, ou realmente estas explicações são anteriores a W.W. da Matta e Silva.
E curiosamente a entidade fundadora desta Federação chama-se Tenda Espírita Mirim, cujo fundador sr. Benjamim Figueiredo, médium do conhecido Caboclo Mirim, mesma entidade que apresentou a tese sobre as origens sanscritas da palavra Umbanda no Primeiro Congresso Brasileiro do Espiritismo de Umbanda.
Gostaria que pesquisadores, umbandistas ou não, mas sinceros e que de fato sejam conhecedores deste momento histórico na Umbanda possam me disponibilizar informações com as respectivas “provas” para que possamos traçar linhas mais claras sobre o desenvolvimento desta corrente na Umbanda. Volto a afirmar que meu interesse neste momento é única e simplesmente histórico e que quaisquer afirmações não influenciarão em nada a figura de Mestre Yapacani, portentoso médium cujo esforços em muito ajudou e ainda vem ajudando de forma vigorosa o movimento umbandista através de seus livros, mesmo após 45 anos de suas primeiras publicações e 12 anos de seu desenlace.Com todas suas bênçãos, Saravá Pai Matta!
Iniciarei neste momento o segundo ponto que me propus a discutir neste texto, as mudanças operadas pela Umbanda Esotérica no culto aos Orixás e o ponto arquimediano desta mudança. Peço a partir de agora um pouco da paciência dos leitores e atenção redobrada, pois talvez o texto se torne algo mais denso para compreensão.
Nada mais claro nos é hoje que, com a vinda dos africanos para o Brasil, vieram com eles também a suas religiões. Estas, com o passar dos tempos e outras causas que não cabe a este texto discutir se uniram e se amalgamaram constituindo então aquilo que hoje chamamos de Candomblé. O Candomblé possui como cerne de sua adoração os Orixás, chamados por uns de Inkices e por outros Voduns. Estes de modo geral foram antepassados dos povos que para cá vieram, como por exemplo, Xangô era rei da cidade de Oyó e Ogum da cidade de Irê. Com uma série de contos sagrados os itán-ifá, que hoje simplesmente identificamos por “lendas” do candomblé, constituem todo a base deste sério sistema religioso possuindo inclusive uma profunda filosofia nos conceitos para entendimento do Homem e a profunda integração com a Natureza.
Estes mesmos Orixás eram lembrados por seus feitos quando humanos, e pelos motivos de suas transformações em Orixás. A transformações destes homens importantes em Orixás por vezes remetem a uma guerra ou a uma grande paixão, podendo passar por grande ódio ou desilusão, ou por possuírem poderes de cura. Eram lembrados também por suas principais características na Terra ( Aye ), como ser justo, ou brigão, vaidoso, charmoso ou mesmo vingativo. A lembrança destes Orixás, portanto seus cultos consiste em oferendas destas ou daquelas comidas, panos de diversas cores, ou bebidas que mais os agradam e isto também relacionado a todo um sistema de práticas de magias e curandeirismos daquele povo, ou melhor daqueles povos.
Geralmente estes importantes homens ao se transformarem em Orixás tornavam-se elementos da Natureza como um rio, uma árvore, o mar, ou do Orum poderiam ter domínio de uma força natural como os trovões, as chuvas, as matas. Então podemos ressaltar que para os povos africanos e também em seus cultos no Brasil, a ligação dos Orixás é com a Natureza sendo eles próprios os elementos da Natureza ou Forças Divinizadas dela e não com os astros, cuja presença em todo o sistema de culto aos Orixás é inexpressiva ou mesmo inexistente. “Os iorubás como povos da floresta, pouco se interessam pelos astros, para eles, florestas e rios são mais importantes que a Lua ou as estrelas.” “A morada dos deuses iorubás, emblematicamente, não fica no céu, mas sob a superfície da terra.” ( Prandi ,R. 2002 ).
Tentarei agora a delimitar o problema que quero expressar.
A noção da “morada dos Orixás sobre a superfície da terra” é um conceito importantíssimo para este culto pois representa, a meu ver, um profundo enraizamento do homem na Natureza. Tudo está aqui e aos nossos olhos e mãos. Isto é o Orixá: os rios, o mar, as matas, as folhas e o vento e tudo isto que é a Natureza é o Orixá. Guardemos claramente isto em nossa mente e espírito.
Vejamos agora a mudança operada na Umbanda Esotérica:
Por diversas vezes Pai Matta em seus livros cita o nome de um pesquisador francês, Saint-Yves D’Alveydre. Este pesquisador parece ter sido escritor de alguns livros, dentre eles “L’ Archéomètre”, ou “O Arqueômetro”. Poucas informações temos sobre o livro ou o autor mas, sabemos que ele apresenta um alfabeto dito como adâmico ou wattan, ou seja, um dos ou o primeiro alfabeto surgido entre os homens, segundo Mestre Yapacani. Sabemos ainda que este arqueômetro permitiu a ligação entre o dito alfabeto adâmico com os alfabetos hebraicos, sanscrito e latino, e destes com a numerologia bem como aos signos astrológicos.
Creio eu que a aplicação que a Umbanda Esotérica faz é, associar o nome dos Orixás à estas correlações dadas por Saint-Yves associando o nome do Orixá com suas correspondências numerológicas e astrológicas e daí a correlação com cores e dias da semana. Esta nos parece ser a grande diferença existente no ritual da Umbanda Esotérica. Isto a meu ver implica em drástica mudança ante o entendimento e culto do Orixá.
O Orixá como anteriormente dissemos, não está relacionado com o culto das estrelas ou quaisquer outras correspondências astrológicas, (apoiados estamos sobre pesquisas de respeitados antropólogos). O Orixá relaciona-se com as coisas da Natureza e não com a Lua ou as estrelas, segundo a Tradição. Não que na Umbanda Esotérica a Natureza e seus reinos, sejam descartados mas tornam-se moradas deste ou daquele Orixá pelas influências astrológicas que estas exercem sobre este ou aquele reino. Então a relação do Orixá com a Natureza torna-se secundária!
Apenas sete tornam-se os Orixás cultuados, Oxalá, Ogum, Oxossi, Xangô, Yemanjá, Yori, Yorimá, sendo estes dois últimos termos completamente desconhecidos. Com uma interpenetração um pouco maior neste estudos e atenção nas leituras conseguimos entender o surgimento deste dois termos. Yori é cultuado por todos como Ibeji, são as crianças, os erês, os populares meninos-de-angola. Existe uma discussão se Ibeji é Orixá ou não, mesmo nos cultos africanos onde parece realmente não ser. Aqueles que queiram se aprofundar nesta discussão, ver livro Os Candomblés da Bahia, Roger Bastide.
Quanto a Yorimá, peço a licença para a Ordem Iniciática do Cruzeiro Divino para reprodução de um pequeno trecho do artigo “Os Sete Grandes Mistérios” publicada na “Revista Umbanda – Uma Religião Brasileira” em seu número sétimo, mês maio/junho, do ano 1995, seu autor, William do Carmo Oliveira. Hei-la:
“Yorimá: conhecido nos meios externos da Umbanda , como Obaluayê, Omulu, Shapanan, Yorimá é o termo sagrado do Orixá que assim era fonetizado pela Antiga Raça Vermelha. Representa a terra.” Apresentando um mito de Obaluaye, que interpretado sob correlações numerológicas, chega-se a um mesmo valor numérico do termo Shapanan e Yorimá. Seriam portanto uma mesma força, um só Orixá.
A explicação dada para tais modificações seria que, os termos Yorimá e Yori seriam termos litúrgicos esquecidos nas “noites do tempo”, num glorioso passado da humanidade, de forma pura e límpida estas sete vibrações eram cultuadas. Os mais habituados a tais leituras verificam que sempre referentes aos termos Yorimá e Yori, estão vocábulos como, desvelado, reimplantado ou reaparecido. Estes mesmos termos constituiriam a “Coroa do Verbo”, isto significa, termos sagrados para a movimentação das energias. Realmente, existe um mito narrando um nome oculto de Omulu/Obaluaiê, sendo, por algum motivo, muito perigoso ser pronunciado. Seria Yorimá!?
Na página virtual do “Primado de Umbanda”, complementar a estas informações, dizem: “… os fundamentos continuam os mesmos.” Será? As alterações também estão nas cores que representam as divindades. Estas anteriormente lembravam d’algum modo o Orixá e seus feitos ou moradas – por exemplo o verde das matas de Oxossi, ou o azul dos mares de Yemanjá, na Umbanda Esotérica sob as correspondências astrológicas tornam em amarelo, Yemanjá, Oxossi em azul, Ogum em alaranjado e Xangô, verde.
Problemas podem ser identificados; o primeiro relaciona-se ao ponto arquimediano desta operação, ou seja, o “arqueômetro”. Este livro ou aparelho faz relações entre os alfabetos wattan, sânscrito, hebraico e latino, não parece fazer diante das línguas e dialetos africanos. Não havendo a ligação entre estes alfabetos, improvável se torna a relação. Talvez o motivo de ligar estes termos litúrgicos africanos a um passado na Índia ou de um antepassado comum entre eles, expressados por Pai Matta e seus seguidores seja este.
Um último problema que vejo seria que Orixás tão queridos e importantes como Oxum, Iansã ou Nanã não mais podem assumir a “cabeça” de um filho, função esta restrita aos sete Orixás supracitados. Quais funções passam a assumir estes Orixás? Será que, sendas futuras, assim como fazemos nós, também chorarão termos sagrados, esquecidos nas brumas de um passado áureo, que incautos reformadores e seguidores pouco vigilantes não souberam honrar ?!
Espero que não tenha sido eu, pedante ao ponto de afastar-vos de meus escritos. Também deixo claro que sou “filho” da Umbanda Esotérica e que minha vivência nesta religião já trilhada por 6 anos initerruptos de práticas e estudos. Porém de olhos bem abertos tento caminhar. Que a beleza do canto do Sabiá e a força presente na Cobra Coral acompanhem a todos os que por Amor à Verdade caminham devagar porém firmes